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12 de maio de 2025 | Publicado por: Feminismos Plurais

Maria Firmina dos Reis e as escrevivências abolicionistas – por Ana Lúcia da Silva

O dia 13 de maio marca a abolição da escravatura. Pensando nisso, o Espaço Feminismos Plurais convida a professora historiadora Ana Lucia da Silva, para debater o tema à luz da figura de Maria Firmina dos Reis.

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Brasil, meu nego

Deixa eu te contar,

A História que a História não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

 

Brasil,

meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500

Tem mais invasão do que descobrimento.

Tem sangue retinto, pisado

Atrás do herói emoldurado.

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um País que não tá no retrato […]

Brasil chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles e malês […].

História para ninar gente grande (2019)

Estação Primeira de Mangueira

 


 

No Brasil pós-abolição, negros e negras por meio da luta antirracista têm combatido o racismo estrutural e cotidiano, denunciado o mito da democracia racial em nosso país e questionado a narrativa da História oficial da nação, pois historicamente o protagonismo negro na luta pela liberdade foi invisibilizado.

No Brasil contemporâneo, no carnaval carioca de 2019, a escola de samba Estação Primeira de Mangueira com o enredo “História para ninar gente grande”, o samba-enredo e a Arte carnavalesca questionou a História oficial do Brasil, ou seja, a narrativa tradicional ancorada no paradigma ocidental, tradicional, eurocêntrico e patriarcal, que historicamente deu visibilidade a elite, aos “grandes homens” das esferas política, militar e/ou religiosa, e invisibilizou indígenas, negros, mulheres, mulheres negras, crianças, pobres, trabalhadores e trabalhadoras, entre outros sujeitos históricos anônimos e subalternizados, e movimentos sociais.

A Verde Rosa interpelou o público da Sapucaí, os amantes do samba e a sociedade acerca das narrativas coloniais da História do Brasil, ensinada nos livros didáticos, nas escolas, nos espaços públicos, nos monumentos históricos e nos retratos de personalidades representadas em quadros, museus, entre outros. O enredo “História para ninar gente grande”, estava sob coordenação do carnavalesco Leandro Vieira e o samba-enredo foi composto por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, tendo como intérprete Marquinho Art’ Samba..

Assim, a Mangueira com o enredo, o samba-enredo e a Arte carnavalesca apresentou outros olhares para a História do Brasil, ou seja, narrativas anticoloniais e decoloniais, dando visibilidade aos indígenas, ao povo negro, as mulheres, principalmente as mulheres negras, tais como Maria Felipa, Esperança Garcia, Luiza Mahin, Marielle Franco, entre outras.

Ao compreender que o povo negro foi protagonista na defesa e na luta pela liberdade, aqui estará em destaque Maria Firmina dos Reis e suas escrevivências. Por literatura negra entende-se a produção escrita de intelectuais negros, que em suas “escrevivências” expressam suas subjetividades construídas, experimentadas e vivenciadas a partir da condição de homens negros e mulheres negras na sociedade brasileira.

“Escrevivência” é um conceito cunhado por Conceição Evaristo, um dos ícones da literatura negra na contemporaneidade. Na poética negra a escrita e vivência se entrelaçam, fazendo florescer a “escrevivência”. A escrita está ancorada na vivência, ou seja, nas experiências de vida do povo negro, das mulheres negras no Brasil, no âmbito da diáspora africana. Assim, da união entre escrita e vivência surgiu o conceito de “escrevivência”. Uma escrita/narrativa fundamentada na vivência.

No Brasil contemporâneo, Conceição Evaristo com suas escrevivências nos interpela sobre a História negra. Antes dela, outras mulheres negras relataram suas vivências e do povo negro como Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus. O estudo das trajetórias de vida dessas escritoras e a análise de suas escrevivências nos permitem entender como a intelectualidade negra foi se constituindo historicamente no universo literário brasileiro.

Na sociedade oitocentista, Maria Firmina dos Reis foi pioneira na literatura de autoria feminina, negra e abolicionista.  Ela nasceu na primeira metade do século XIX, em 11 de março de 1822, em São Luís, no Maranhão, no contexto histórico de escravização do povo negro no Brasil. Ela foi registrada como filha de João Pedro Esteves e de Leonor Felipe dos Reis. Aos cinco anos, ficou órfã de mãe e passou a viver com a avó materna e a irmã Augusta dos Reis, em Guimarães, no Maranhão.

Maria Firmina dos Reis viveu boa parte de sua vida em Guimarães, onde fez história. Ela estudou, formou-se professora, tornando-se uma mulher negra letrada, e com suas escrevivências poéticas e políticas relatou a realidade do povo negro, mulheres e indígenas.

Ela estudou e se formou professora primária aos vinte e dois anos.  Em 1847, ela foi aprovada em primeiro lugar no concurso público estadual para Mestra Régia, tornando-se a primeira professora efetiva do quadro de magistério da Província do Maranhão, exercendo essa função até início de 1881.

Maria Firmina dos Reis foi escritora, jornalista e professora. Em Maçaricó, lugarejo a dez quilômetros da Vila de Guimarães, Maria Firmina fundou a primeira escola mista de primeiro grau do Brasil e gratuita, onde meninas e meninos estudavam juntos. Um projeto de Educação que combatia o sexismo e às desigualdades.

Para a sociedade patriarcal, machista e escravagista daquela época, essa iniciativa dela era um escândalo, sendo alvo de críticas. Por isso, Maria Firmina acabou fechando a escola mista.

No Brasil contemporâneo, Maria Firmina dos Reis é considerada a primeira romancista abolicionista, em 1859, ela publicou Úrsula com o pseudônimo “Uma maranhense”. Em Úrsula (1859) ela narrou a realidade do povo negro e fez a defesa da liberdade.

 

Maria Firmina dos Reis e as escrevivências abolicionistas: a condenação da escravização do povo negro

Tancredo ao cavalgar pela mata sofreu um acidente e desmaiou, foi encontrado e socorrido pelo jovem Túlio, negro escravizado. Túlio levou Tancredo para a casa da senhora Luiza B., mulher branca, viúva, paralítica e mãe de Úrsula (filha única). Na casa da senhora Luiza B. Tancredo recebeu cuidados até se recuperar.

No romance Úrsula, enquanto Maria Firmina dos Reis relatou esses fatos, ela em suas escrevivências poéticas condenou a escravização do povo negro no Brasil oitocentista:

[…] O mancebo respirava.

– Que ventura! – então disse ele, erguendo as mãos para o céu – que ventura podê-lo salvar!

O homem que assim o falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar vinte e cinco anos, e que ria franca expressão de sua fisionomia: deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano fervia-lhes nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava, porque se lhe erguia como barreira o poder do forte contra o fraco. Ele entanto resignava-se; e se uma lágrima a desesperação lhe arrancava, escondia-a no fundo da sua miséria.

Assim é que o triste escravo arrasta a vida de desgostos e de martírios, sem esperança e sem gozos!

[…] E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma, porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros em sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso […].

[…] o negro redobrava de cuidados de novo aflito pela mudez do seu doente.

[…] Quem és? perguntou o mancebo ao escravo apenas saído do seu letargo. – Por que assim mostras interessar-te por mim?

– Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado… Eu – continuou, com o acanhamento que a escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos posso prestar, todavia quisera poder ser-vos útil. Perdoai-me…

– Eu? – atalhou o cavaleiro com efusão de reconhecimento – eu perdoar-te! Pudera todos os corações assemelharem-se ao teu – e fitando-o apesar da perturbação do seu cérebro, sentiu pelo jovem negro interessa igual talvez ao que sentia por ele (REIS, 2018, p. 101-102; 103).

 

No século XIX, Maria Firmina dos Reis em suas escrevivências no romance Úrsula expôs o quanto era desumana a prática de escravização do povo negro na América, no Brasil, destoando do pensamento racista vigente daquela época. Túlio, homem negro escravizado, foi descrito como uma pessoa (e não como “mercadoria”), provido de plena humanidade.

O romance Úrsula é um convite para se (re)visitar  e (re)pensar a História do Brasil, vislumbrando-se o protagonismo negro na luta pela liberdade. Maria Firmina dos Reis também publicou em diversos jornais literários do estado, tais como: Pacotilha. Eco da Juventude, Semanário Maranhense, O Federalista, A Verdadeira Marmota e Almanaque de Lembranças Brasileiras. Em 1861, publicou o romance indianista Gupeva, participou da antologia poética Parnaso Maranhense. Além disso, escreveu vários poemas em revistas literárias de São Luís, posteriormente reunidos em Cantos à beira-mar (1871), onde há poemas realistas, patrióticos e dedicados aos negros e voluntários da Pátria que foram lutar na Guerra do Paraguai (1864 – 1870). Em 1887, também publicou o conto A escrava. Maria Firmina dos Reis fez a defesa da abolição da escravização do povo negro no romance Úrsula e no conto “A escrava”.

No século XIX, naquela sociedade escravagista, patriarcal, machista e racista, Maria Firmina dos Reis, foi uma mulher negra letrada e insurgente. Ela não se limitou aos papéis sociais destinados às mulheres de sua época, ou seja, serem apenas esposas submissas e mães, reservadas ao espaço da casa.

Outro fato peculiar na biografia de Maria Firmina dos Reis é que não há registro fotográfico dela. No século XIX, as pessoas oriundas da elite encomendavam pinturas para perpetuarem suas imagens e feitos, por isso contratavam pintores para fazerem seus retratos. No Brasil contemporâneo, a imagem que se tem de Maria Firmina é com base na descrição de quem a conheceu, como Dona Nhazinha Goulart, criada pela romancista, na residência da Praça Luís Domingues, e Dona Eurídice Barbosa, que estudou com Maria Firmina na Escola Mista de Maçaricó. Segundo essas mulheres, Maria Firmina dos Reis era uma mulher com “rosto arredondado, cabelo crespo, grisalho, fino, curto, amarrado na altura da nuca; olhos castanho-escuros, nariz curto e grosso; lábios finos; mãos e pés pequenos; meã (1,58, aproximadamente), morena” (MORAIS FILHO, 1975, p. 259). Além disso, é interessante expor o equívoco que há em associar a imagem de Maria Firmina dos Reis com a da escritora, cronista, romancista, contista e jornalista Maria Benedita Câmara Bormann, pseudônimo Délia, que nasceu em 25 de novembro de 1853, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e faleceu em julho de 1895, no Rio de Janeiro.

Em 2019 e 2020, com base nessa descrição de quem viveu com Maria Firmina dos Reis, o artista plástico maranhense Luzinei Araújo pintou uma tela fazendo a representação dessa mulher negra, que compõe o acervo do Instituto Histórico Artístico e Geográfico, de Guimarães – MA.

Maria Firmina dos Reis. Óleo sobre tela, 70 x 50 cm. Acervo: Instituto Histórico Artístico e Geográfico, de Guimarães – MA. Artista plástico maranhense Luzinei Araújo, produção artística realizada em 2019 e 2020.

 

O artista plástico vimarense fez a representação da imagem (busto) de Maria Firmina dos Reis com olhar altivo, apresentando os traços fenotípicos como a pele negra, os cabelos crespos, lábios e nariz negroides, com vestimenta simples em tom azul, distinta das roupas das “sinhazinhas” e senhoras da casa-grande daquela época. Assim, por meio da pintura se estabeleceu uma política de memória da imagem dessa intelectual insurgente, que por meio da literatura questionou a escravização do povo negro e fez a defesa da abolição no Brasil.

A abordagem da História negra a partir de múltiplas linguagens como a literatura, a pintura e/ou audiovisual possibilita o conhecimento de trajetórias de vidas, ou seja, de biografias negras. A biografia de Maria Firmina dos Reis nos foi e é apresentada em uma perspectiva decolonial no audiovisual “Você sabia esse fato sobre Maria Firmina dos Reis?” (2017) de direção e roteiro de Hewerton Souza, no canal deste, disponível clicando aqui. 

No Maranhão, constata-se a preocupação com a política de preservação da memória de Maria Firmina dos Reis, da história, de sua biografia, ou seja, da trajetória de vida, obra e legado, como também o interesse em difundir a imagem dela, conforme a descrição de quem conviveu com essa escritora.

Enfim, a biografia dessa escritora negra e seus escritos nos permitem revisitar a História do Brasil e o universo literário, (re)pensando as vivências, as lutas e as práticas de resistência do povo negro, das mulheres negras pela abolição, os papéis sociais reservados às mulheres segundo a sua origem étnico-racial na sociedade escravocrata dos oitocentos.

Assim, compreender o protagonismo negro na luta pela liberdade, antes mesmo que o Movimento Abolicionista ganhasse força no Parlamento e intensificasse o debate público acerca do fim da escravização do povo negro em nosso país, e assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.

Por isso, seguimos na luta por uma Educação antirracista, feminista e em Direitos Humanos, (re)escrevendo a História desse país, que foi construído por mãos negras e outros povos, trilhando os caminhos abertos pelas Leis n. 10.639/2003 e n.11.645/2008, que tornaram obrigatório o estudo da História e cultura africana, afro-brasileira e indígena, da Educação para as relações étnico-raciais (ERER), e incluíram a data “20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra” no calendário escolar, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 9394/1996.


Referências:

ADLER, Dilercy Aragão. A mulher Maria Firmina dos Reis: uma maranhense. In: DUARTE, Constância Lima. TOLENTINO, Luana. BARBOSA, Maria Lúcia. COELHO, Maria do Socorro Vieira (orgs.). Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora. Rio de Janeiro: Malê, 2018. p. 81 – 101.

ARAÚJO, Luzinei. Pintura. Tela: Maria Firmina dos Reis. Óleo sobre tela, 70 x 50 cm. Acervo: Instituto Histórico Artístico e Geográfico, de Guimarães – MA. Artista plástico maranhense Luzinei Araújo, produção artística realizada em 2019 e 2020. Instagram: @luzinei.araujo.1

EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância Lima. NUNES, Isabella Rosado. Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26 – 46.

GOMES, Agenor. Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 2022.

MANGUEIRA. Estação Primeira de Mangueira. Carnaval carioca 2019, enredo e samba-enredo: História para ninar gente grande. Disponível em: < https://youtu.be/JMSBisBYhOE?si=WrDS1AyUUNd0Gg6V >

MORAIS FILHO, Nascimento. Maria Firmina, fragmentos de uma vida. São Luís: Governo do Estado do Maranhão, 1975.

REIS, Maria Firmina dos. A escrava (1887). In: Úrsula e outras obras [recurso eletrônico] / Maria Firmina dos Reis. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. (Série prazer de ler; n. 11 e-book)

SILVA, Ana Lúcia da. A opinião pública sobre as vozes negras abolicionistas e as escrevivências de Maria Firmina dos Reis na perspectiva da Nova História Política. Maringá: Programa de Pós-Graduação em História (PPH), 2023. 268 f.

SOUZA, Hewerton. Audiovisual: “Você sabia esse fato sobre Maria Firmina dos Reis?” (2017) de direção e roteiro de Hewerton Souza. Canal Hewerton Souza. Disponível em:< https://youtu.be/BoHwr3LOcUo?si=iAo8CsYgYm7JJevG>.