Descriminalização do Aborto
Questões de cunho social precisam ser enfrentadas em debate sério, científico e ao lado da coletividade diversa e plural dos brasileiros.
O debate sobre a descriminalização do aborto está em pauta há muitos anos no Brasil. Contudo, o novo projeto de lei n° 1.904/2024 que tramita pela Câmara dos Deputados pode colocar um fim – de maneira arbitrária – nesta discussão.
A legislação atual criminaliza a conduta nos artigos 124 a 128 do Código Penal, com pena máxima de três anos quando ocorre provocado pela gestante ou com seu consentimento.
No entanto, existem três casos em que o aborto é permitido pelas vias legais:
- Quando necessário para preservar a vida da gestante;
- Quando houver comprovação de que o feto é anencéfalo;
- Quando a gravidez é resultado de um estupro.
Em todos os casos, a gestante pode escolher ou não manter a gravidez, mas tem aval legal para interrompê-la. E em nenhum dos casos a lei estabelece um prazo ou um limite de semanas para interromper a gestação.
O projeto de lei, por sua vez, visa alterar o Código Penal equiparando o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples – que conta com pena máxima de vinte anos– , inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro de gestantes maiores e menores de idade.
Dados divulgados pela edição deste ano do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM), mostrou que foram registradas mais de sessenta mil ocorrências de estupros em mulheres no Brasil, o que equivaleria a um estupro a cada oito minutos.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, de cada quatro estupros, três foram cometidos contra menores de 14 anos ou incapazes por outro motivo (enfermidade ou deficiência, por exemplo). A maioria são meninas negras (52,2%) de até 13 anos (61,6%).
Firmados em ideais coloniais e patriarcais, nosso país interpreta com “normalidade” que o debate sobre os corpos de mulheres e crianças seja feito sob a lente pública, sem compreender que sobre tais corpos há a existência de entes que detém de direitos e deveres.
A cultura do estupro, entretanto, aparece como chancela à permanência de violências contra esses grupos, pois silenciam ou relativizam tais condutas. E justamente por se tratar de uma cultura, ou seja, a criação e repetição de comportamentos, é passível de mudança através de atos coletivos.
Como Estado Democrático de Direito, questões de cunho social precisam ser enfrentadas em debate sério, científico e ao lado da coletividade diversa e plural dos brasileiros.
O aborto legal, em caso de abuso, é um direito conquistado pelo movimento de mulheres, visando oportunizar a segurança física e mental de gestantes que já vítimas de severa violência possam escolher se desejam ou não continuar com a gravidez.
Não é possível falar sobre o tema a portas fechadas. É preciso não só deixar de lado pré-conceitos, mas compreender que aborto no Brasil é questão de saúde pública. O debate precisa acontecer com seriedade e no seio do debate público como demandam preceitos constitucionais.